Leandro Pires, o menino de 12 anos, da aldeia de Cedaínhos, Mirandela, teve uma “morte causada por afogamento no Rio Tua e segundo os resultados preliminares da autópsia não foram encontrados sinais de agressão”. É isso que vem nos jornais. Uma conclusão directa e fria sobre o corpo da criança. Talvez assim algumas consciências fiquem mais descansadas. Portanto, telegraficamente, um miúdo reguila atirou-se ao rio num gesto de desafio e morreu. Ponto. Mas será que se esperariam hematomas, fracturas ou feridas por arma branca? Quem fala, afinal, das outras agressões, aquelas que não se vislumbram na pele? As da alma...
 
Subitamente a sociedade portuguesa ficou em estado de choque com o que se está a passar em muitas escolas do país e descobriu o que há muito era consabido nas famílias: agressões físicas e verbais, por vezes continuadas no tempo, alcunhas estigmatizantes, humilhações, actos  de vandalismo, crueldade e de indisciplina, roubo de telemóveis, insultos e ameaças a professores e funcionários, etc.
 
A comunicação social tem procurado as palavras certas para a qualificação do acto de Mirandela: uns falaram de “atirar-se”, outros de “desaparecimento”, uns quantos de “postura desafiadora”, alguém sentenciou mesmo “suicídio”... Deixemos isso para os técnicos especialistas, num trabalho que se pretende de serenidade e sem a turbulência das grandes emoções. Ou seja, a chamada autópsia psicológica. Ao fim e ao cabo, a reconstrução do estilo de vida da criança: o seu temperamento, o seu carácter, a dinâmica familiar e suas interligações, traumas de infância, doenças, os amigos, os passatempos, os sonhos, os apelos, o que disse, o que escreveu...
 
Do ponto de vista da suicidologia há uma tríade relevante quanto a todas aquelas dúvidas sobre o próprio acto em si e a probabilidade de morte: exequibilidade,  letalidade e intencionalidade. Se os dois primeiros aspectos parecem  potencialmente claros, face ao forte caudal do rio e perante a circunstância da criança não saber nadar, resta o terceiro, cuja resposta é muitíssimo complexa e não sei se será possível dar cabalmente. Estas hesitações são clássicas dentro da suicidologia (ver mais em www.spsuicidologia.pt) na medida em que há muito de impulsividade no acto em si e de ambivalência mesmo no próprio dia. Ou seja, projectos de vida. Todavia, esta luta interna do querer- não querer  pode acompanhar-se mesmo até ao fim. Por vezes é deixado ao destino o que tiver que acontecer. Para complicar todas estas questões intrigantes surge a idade da criança: 12 anos. Um factor frequentemente perturbador para o real entendimento do que é a morte. Não como uma viagem ou um hibernar. Mas o que jamais poderá ser ignorado é que, seja o que for, houve um comportamento público, muito simbólico, que revelou uma marca de sofrimento.
 
Bem sei que em Mirandela há uma família com uma dor atroz que certamente perdurará. Também sei que a sociedade deveria, para além de lamber todas as feridas, mobilizar-se de uma vez por todas para que a morte do Leandro, independentemente da busca frenética das tais palavras exactas, não tenha sido em vão. O desespero está sempre a montante. E avisa. Acontece é que nós andamos muito distraídos...
 
 
PERFIL
Carlos Braz Saraiva, médico psiquiatra Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra
Coordenador da Consulta de Prevenção do Suicídio dos Hospitais da Universidade de Coimbra
Ex- Presidente da Sociedade Portuguesa de Suicidologia (2001-2005)
 
Texto publicado no Diário de Coimbra de 2 de Abril de 2010

 

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